Horas findadas após o dia mais
longo com a noite mais curta, vejo-me debruçada na inevitável pressão académica
que teima em prolongar-se. Mea culpa,
a quem os pensamentos esquizofrénicos assombram quando me auto disciplino para
o abençoado momento de concentração. O meu corpo só cede à obediência e à
assertividade quando absorve a banda sonora certa e essa procura poder-se-á
revelar sufocante, todo um tempo perdido para acalmar o inconsciente alarmado pelas
lembranças e respetivas distorções que mais procuro reter nas portas da memória.
Não foi há muito que essa demanda revelou-se em forma de pista, quando dei por
mim a procrastinar pelo meu maioritariamente inútil feed de Facebook. Alguém, num dos meus grupos, tentava a sua sorte
na venda de bilhetes para o concerto de ANOHNI. Não vou negar o teor tentador
da proposta de negócio, porém tive que me debater com os prós e contras e acabar
por levitar para mais perto da razão. Se as circunstâncias da minha vida não
jogam a favor dessa experiência, deixar-me ludibriar pela sua obra pareceu-me a
decisão mais acertada. Tudo isto antecipou toda uma caminhada espiritual, uma
faixa de cada vez.
Esta voz entrelaça o seu voodoo imperceptível com um instrumental
que a ampara sempre que se ouve o seu propositado fraquejo, qual sustentáculo
semelhante a uma cama com lençóis de seda. Com apenas um LP, ANOHNI (voz dos
Anthony & The Johnsons, grupo que desconhecia até à data) trouxe as minhas
inseguranças à flor da pele por bronzear.
Como começar por explicar ANOHNI? Ora bem… Se o James Blake
ligasse mais a política do que às paixões, teríamos ANOHNI. Penso que já se
percebeu a ideia e automaticamente devem estar a desenvolver uma generalização
redutora de tudo o que poderá ser a sua sonoridade. ANOHNI é uma artista transgénero
que não poupa na violência lírica e sonora inerente à atualidade. O piano, que raramente é dispensado de qualquer uma das
faixas, abraça a restante instrumentação eletrónica que decompõe as palavras cantadas
. O álbum «Hopelessness» é vulnerável e cortante, intimidador sem ser efusivo, realista
e violento enquanto transmite uma certa esperança. Sem esquecer que é angelical
e quando falamos dos anjos não se olha a sexo.
«Drone Bomb Me» inicia esta profundidade inquieta como um aquecimento para qualquer cena dramática. As massagens estão feitas e a alma mais repousada, canta-se "Blow me from the mountains/And into the sea/Blow me from the side of the mountain/Blow my head off/Explode my crystal guts". A segunda faixa, com uma percussão tribal e uma orquestra de fundo deslumbrante, é definitivamente a cereja no topo do disco. «4 DEGREES» é a antítese completa do que o título elucida e chega a ter proporções flamejantes. Sem dúvida, a minha favorita.
«Watch Me» até podia ser sobre amor fraternal, mas é sobre o Governo Americano e voyeurismo, numa poesia que envolve preces e denúncias das maldades do mundo em que vivemos. Vale a pena ouvir esta com atenção, só para contemplar o desfecho destes pedidos.«I don't love you anymore» e «Obama» respiram insegurança e temor, sendo de uma tamanha violência que me forçou a parar o disco a meio para descomprimir com a comestível One Dance, do Drake (confesso este pecado e atribuo a culpa à publicidade do Spotify). «When Did You Separate Me from the Earth» é uma viagem espacial pelas estrelas e passo a destacar também «Marrow», o desfecho singelo para este álbum que, quer eu volte a ouvir ou não, primou pela frontalidade emocional.
ANOHNI fez por mim aquilo que eu não conseguia fazer: a
sensação natural de que tudo está bem, mesmo que não acabe a bem.
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